“Tradição e Ruínas”
Resisti um pouco em escrever sobre a Ocupação Magdalena neste momento estranho que estamos vivendo porque é um momento de mudança e também de revelações. Estávamos começando a organizar a Ocupação Magdalena 2020 quando chegou a Covid 19. A quarentena escancara aos nossos olhos as situações de violências socioculturais que já gritavam por mudanças.
Nós da América Latina conhecemos as tradições e as ruínas de um forma diferente do mundo, conhecemos as ditaduras em nossas carnes, em nosso DNA, sempre somos a periferia, sempre colonizados, sempre resistindo e sempre com muitas perguntas…
Agora no Brasil assistimos quase impotentes a destruição programada do país, do nosso povo, dos nossos ancestrais, de nossa cultura, dos espaços culturais, das nossas histórias e sonhos…
Vivemos um momento onde as abstrações quase não fazem mais parte do nosso cotidiano, então
talvez este seja o momento de compartilhar o que foi esse projeto, que nasceu no concreto entre tradições e ruínas da cidade de São Paulo...
Estava me preparando para participar do Festival Transit IX- Hope in Action, em Holstebro, Dinamarca, quando recebi o convite do Goethe Institut São Paulo para uma residência na Casa 8 na Vila Itororó. Logo pensei em fazer um pequeno encontro com algumas artistas da rede Magdalena, uma célula para um projeto maior que será um Festival Magdalena em São Paulo.
Voltei da Dinamarca com meu coração semeado de força e inspirações e determinada a criar um espaço/tempo na cidade de São Paulo para que as mulheres artistas pudessem ocupar com suas vozes e sua arte e também para criar a possibilidade do encontro aqui, uma vez que nós artistas da rede Magdalena muitas vezes somente nos encontramos em Festivais fora da cidade ou do país.
A residência foi na Vila itororó, um canteiro aberto na Casa 8 - uma casa readequada, dentro de uma vila tombada do início do século no centro da cidade de São Paulo em processo aberto de transformação em um centro cultural.
Em agosto quando entrei na Casa 8 ela inspirava ações e poesia no espaço porém estava vazia, abandonada e suja…
Não havia nenhuma estrutura para apresentações cênicas, sem recursos técnicos para produções artísticas, enfim um espaço não configurado como um centro cultural e com acesso restrito (para se chegar na Casa 8 precisava-se usar calçados fechados e capacetes).
Foi um grande desafio diante das especifidades da Casa 8 criar o espaço/tempo bem no centro, no coração da cidade de São Paulo para se ouvir as vozes de mulheres artistas. A programação teria que seguir os horários estipulados pela prefeitura, não podendo passar das 18h. Estávamos com pouco tempo para organizar a residência e com um orçamento muito reduzido para a envergadura do projeto que optamos em realizar. Inicialmente seriam 3 meses de atividade porém optamos por estender a programação por 4 meses, neste último com recursos exclusivos do Coletivo.
Mas eu queria agir… Nós do Coletivo Galeria Gruta queríamos agir…
Enviei fotos da Casa 8 para algumas artistas e as convidei. Encontrei muita disponibilidade e generosidade nas mesmas que aceitaram participar desta travessia.
Jill Greenhalgh também generosamente aceitou o convite para participar desta aventura com uma residência de uma semana comigo. Chegou em setembro, logo no início e ainda não tínhamos o dinheiro em mãos. Nós limpamos, carregamos pedras, terra… E assim nasceu a Performance - Instalação “Buried” que ela havia iniciado em outra residência no Festival O Levante.
Deste ímpeto de se criar novas paisagens com as vozes das mulheres entre as tradições e ruínas da Vila itororó nasceu a Ocupação Magdalena. O Coletivo Galeria Gruta, em parceria com o Goethe Institut São Paulo e com a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, realizou a residência artística de quatro meses na Casa 8 da Vila Itororó de setembro a dezembro de 2019. A residência contemplou performances, instalações, pocket shows, lançamentos de livros, exposições, workshop, encontros e rodas de conversa.
O tema da residência foi Tradição e Ruínas, “Quanta história existe nas ruínas?
Minha curadoria foi pensada para o local com trabalhos de artistas mulheres que dialogassem com as características físicas e conceituais da Vila Itororó primando por trabalhos autorais e de excelência, com foco em temas como emancipação, ancestralidade e patriarcado.
Nesta Ocupação tivemos a participação de artistas já integrantes da rede The Magdalena Project e também artistas convidadas que de alguma forma já estavam conectadas com os princípios da mesma. Busquei dar espaço para apresentações de diferentes linguagens e estéticas nas performances e nas apresentações musicais. A programação também foi pensada de forma a garantir representatividade e diversidade.
Pelas características da Vila Itororó, o formato proposto para as ativações da Casa 8 se concentrou aos finais de semana no período da tarde. Para criar um ambiente de intimidade na casa entre
as artistas e o público oferecemos um gostoso café com bolo entre as apresentações, o que inspirou trocas espontâneas entre os mesmos.
Realizar a Ocupação Magdalena me fortaleceu não somente como artista mas também como produtora, aqui adiciono uma constatação: Em vários momentos esbarrei no machismo estrutural, mesmo me colocando firmemente como produtora muitas vezes parecia que todo o meu trabalho se dissolvia. Para mim os encontros Magdalena são uma oportunidade para refletir, fortalecer e garantir a visibilidade da mulher em cena e também na produção e nos trabalhos técnicos.
Durante muitas vezes nos deparamos com as dificuldades de se sair de uma lógica da estrutura convencional da “caixa-preta” para nos adaptarmos às necessidades e configurações do espaço para reencontrarmos a verdadeira potência da Ocupação Magdalena. Foi importante lembrar às participantes que a ocupação não era uma residência acadêmica, não era um festival, e que a proposta era de escutar o espaço da Casa 8, dialogar com ele e ocupá-lo. E que este era um desafio para todas nós…
Fizemos esse pequeno encontro se tornar possível, criamos na casa um tempo/espaço na metrópole… Fizemos essa célula gerar novas células e cada uma de nós ocupou o espaço com suas resistências, linguagens, pesquisas, histórias, voz e muita poesia. No final de dezembro quando fui entregar as chaves da Casa 8, ela ainda estava preenchida, aquecida com o calor dos encontros e ecoando as vozes das mulheres artistas.
O que foi a Ocupação Magdalena 2019 na Vila itororó?
Foi a semente que brotou do compromisso de se ser esperança em ação
Foi um tempo/espaço na cidade de São Paulo para se ouvir as vozes de mulheres artistas
Foi um ato subversivo porque foi totalmente contra o que momento político em que estamos nos incita a fazer...
Foi tempo para encontros, arte e afetos com café
Foi um tempo em que a poesia das mulheres nos lembrou que não somos ruínas e nem pedras e que podemos encontrar espaço na poesia das nossas memórias
Foi um espaço/ tempo para a reflexão, para a poesia numa sociedade que nos instiga a sermos superficiais e rápidos...
Foi um tempo de liberdade.
Me disseram que fui corajosa… Não sei... Sei que foi com a esperança em ação, que foi com ela que removemos as ruínas para ouvir as canções das mulheres…
O que foi a Ocupação Magdalena?
Termino com a frase que a querida Paola Luna Vellucci disse: “Foi Resistência em Ação”.
Thaís Medeiros
Diretora Artística e Coordenadora
Ocupação Magdalena Vila Itororó
Fotos Tatiana Mito