Um Espaço/Tempo e o silêncio em mim
Helen me convidou para o Magdalena München Saison 2018, para participar de uma residência artística de três meses em Munique na Villa Waldberta, um lugar maravilhoso, uma casa maravilhosa e que carrega tantas histórias...
Foi minha primeira residência artística e foi também a primeira vez em que eu e Ivan meu filho vivenciamos a neve e o seu silêncio… Ivan foi também na residência, ele é músico e artista marcial e participa do workshop e da performance Tapete Manifesto. Que alegria tê-lo ao meu lado nesta aventura.
Ficamos em um apartamento com muita luz, com janelas grandes, de lá se via o Starnberger See e os Alpes da Baviera, me lembro que acordava em muitas manhãs às 5h para ver o sol nascer
Quando iniciei a residência tinha uma ideia do desafio e do que estava buscando no meu trabalho e nas possibilidades de trocas e encontros com as outras artistas, mas o que vivenciei realmente ultrapassou minhas expectativas.
Fui para apresentar as performances Tapete Manifesto e Tríptico: Ossos, Batom Vermelho e Hamlet nos teatros HochX e Meta Theater, criar uma performance para o “Break Through #20” no atelier da querida Doro Seror e ministrar um workshop. Ao final da mesma realizei 7 apresentações de 6 performances diferentes.
Ministrei o workshop Tapete Manifesto com o tema da violência contra as mulheres, participaram artistas incríveis de países diferentes. Ao final do mesmo apresentamos a performance que é em essência um manifesto poético. Refletimos a violência contra as mulheres com nossos corpos e nas nossas histórias vividas de violência...
Encontrei o eco desta trágica tradição no México e na Sérvia.
Pesquisei as estatísticas de violência contra as mulheres na Alemanha, e constatei a triste realidade de 360 vidas de mulheres perdidas por ano.
No Brasil a realidade é ainda mais assustadora: mais de 5.400 mulheres mortas por ano.
O Brasil é o quinto país que mais mata mulheres no mundo.
A cada 1,5 hora ocorre um feminicídio e 5 mulheres são estupradas por hora no Brasil.
A performance Tapete Manifesto teve vários desdobramentos como “Janela Manifesto” no ateliê de Doro e na Instalação “Unsichtbare Orte (Invisible Spaces - Women in Art)” de Kordula Lobeck de Fabris. Foi importante encontrar estes outros espaços/formatos para reflexão e essencial a troca com essas duas artistas de grande sensibilidade e força. A querida Kordula também foi minha parceira nestes três meses de residência, além de trocas artísticas, inspiração com sua arte, criava momentos maravilhosos com seus pratos deliciosos.
Participei de 3 workshops com mestras maravilhosas e inspiradoras e fui semeada com afetos diferentes que fortaleceram minha alma em camadas diversas. Deborah Hunt e suas máscaras, que trabalho intenso e sensível pude vivenciar ao construir a minha máscara. Com Jill Greenhalgh reencontrei minha força e o controle da minha presença no silêncio das histórias... E como foi fluida e inspiradora minha troca com Helen Chadwick, um encontro que continua reverberando em mim. Ela colaborou com minha performance Tríptico: Ossos, Batom Vermelho e Hamlet e eu com também com minha história para sua performance TRUTH.
Sou uma artista brasileira e, no meu país, desenvolver pesquisas de linguagens e experimentações artísticas é considerado um “luxo desnecessário”. Minha arte é sempre desestruturada e interrompida pela urgência do sobreviver. Preciso me reinventar a cada dia, principalmente no momento atual onde o retrocesso impera na política e tenta eliminar todas as possibilidades da arte, da cultura e dos sonhos. Por três meses eu convivi com a diferença em Munique onde os artistas recebem um tratamento diferenciado, oportunidades são oferecidas, existe respeito e o entendimento da importância da cultura e do fazer artístico.
A residência me proporcionou vivenciar colaborações que surgiram naturalmente durante o festival e me possibilitou romper com as questões de carência de tempo/espaço que vivo na cidade de São Paulo.
E não dá para esquecer o passeio com Andy num dia muito frio por Munique, a trilha para conhecer o mosteiro Andechs com Jana, Ivan e Zoe encontrando muitas pedras pelo caminho…
As celebrações e trocas com Claudia Urrutia, Silvie Marchant, Teatro Om, Annie Abrahams e todas as outras pessoas incríveis que conheci… Entre as artistas que participavam da residência havia tempo, muita criatividade e confiança. Nos reconhecíamos em nossas histórias, nossas vozes, nossas linguagens e em nossas buscas.
Fiquei também muito tempo sozinha então caminhava até o lago de Starnberger e lá criei um vídeo com meu celular para minha Ofélia mergulhar…
Um tempo de reflexões, atritos, muito trabalho, idas e vindas de trem apresentando minhas performances e assistindo performances... Tudo foi realizado com muito afeto, café, vinho, o doce alemão (que esqueci o nome e que é só feito naquela época do ano) e com as melhores cervejas! ...E neste espaço/tempo que meu coração se abriu para minha criação, foi neste tempo/espaço que em contato com o silêncio da neve, do lago, em contato com minha história (também feita de silêncios) que pude reconectar-me com minha paz, com meu silêncio, e com minha força de mulher e de ser artista…
Cada Festival Magdalena, criado e produzido por mulheres no mundo é sobretudo um ato revolucionário. Um ato onde tecemos laços numa rede de sonhos, desejos e realizações. Soltamos nossas vozes, podemos escutar as vozes femininas, seus gritos… Isso nos salva, nos inspira e incita a continuar, a ousar e a acreditar no fazer artístico.
A residência organizada por Helen não poderia ser diferente e ela ainda nos trouxe algo essencial: o espaço; o tempo; e o silêncio.
Admiro e sou inspirada por sua coragem ao realizar o Magdalena Saison, foi uma verdadeira maratona para ela e para todos nós. Helen o fez com poucos recursos, mas com a potência de seus sonhos. Para mim ela reinventa, introduz uma respiração e cria novas possibilidades ao realizar essa ousada residência, talvez uma nova filosofia no coração das Magdalenas.
Deixamos Munique em plena primavera, com o coração carregado com as flores dos encontros e trocas, e muita energia, inspiração e esperança para novos projetos e com um desejo de criar um espaço/tempo em São Paulo para realizar um festival.
Em meu ser artista, em meus sonhos, sempre busco um espaço vazio, um espaço/tempo e o silêncio em mim para minhas criações e também as possibilidades de relações e trocas com o outro em níveis profundos possíveis...
Foi o que encontrei nesta residência, nesta travessia…
Agradeço de coração a querida Helen pela riqueza e coragem de seu projeto, toda a equipe de produção, a querida Karin Sommer pelos encontros com as artistas residentes (Jour Fix) com tanto amor que nos unia nas nossas diferenças.
Agradeço a todos da Villa Waldberta e as queridas mulheres maravilhosas e potentes artistas que dividiram este incrível espaço comigo, as queridas Angelika Schindel e Leonie Sontheimer, ao meu filho querido e ao meu companheiro Ulysses e a minha mãe que me inspira. Agradeço especialmente a Karine Legrant e ao Instituto Goethe que apoiaram minha residência.
Thaís Medeiros