Sobre Levantes e Montanhas: um relato crítico

Christina Fornaciari [1]

É uma alegria receber o convite para falar de “O Levante! Festival Internacional de Mulheres em Cena”, um evento idealizado pela atriz e diretora da “O Trem Cia de Teatro”, Lívia Gaudêncio (SP), que ocorreu entre os dias 9 e 15 de setembro de 2019 em Belo Horizonte, Brasil.

Com objetivo de propiciar a troca cultural e artística entre mulheres de diversos países com diferentes trajetórias, a ideia, inicialmente modesta, acabou sendo abraçada por muitas outras mulheres que ampliaram a dimensão do evento, culminando em uma proposta expandida. A intensa programação incluiu residências artísticas com Jill Greenhalgh (Reino Unido), Violeta Luna (México) e Veronica Mato (Uruguai), performances, espetáculos, mesas de debate, sessões de cinema e exposições de artes visuais, envolvendo cerca de 80 mulheres de variadas nacionalidades, idades e linguagens.

Desde o primeiro dia do evento, a forte presença dessa diversidade nos conduziu a visitar um Quilombo, [2] o Kilombo Urbano Manzo. Localizado na periferia da cidade, esse território representa a resistência de um povo originário da África que permanece mantendo vivas suas tradições culturais, graças à força de suas mulheres, já que a cultura quilombola é matriarcal. Lá, as participantes tiveram duas oficinas: Oficina de Banhos de Ervas Sagradas, com Mãe Cássia, do Kilombo Urbano Manzo; e Oficina de Confecção de Bonecas Abayomis, típicas dos navios negreiros [3], com Jana Janeiro, da Casa Quilombê.

Foi interessante perceber que a ancestralidade dessas práticas por vezes encontrou eco em produções artísticas contemporâneas, demonstrando que o laço temporal entre essas manifestações culturais pode ser traçado a partir da figura feminina e de seu papel nas diferentes épocas e lugares.

Livia Gaudencio 2019Um exemplo disso foi a proposta da performance “Urucum – Oráculo de Corpos Demarcados”. A performance propiciou um retorno à milenar arte de recorrer aos Oráculos para promover cura, num mergulho no universo íntimo de cada participante e porque não dizer, um mergulho na sociedade. A obra surge do encontro entre a artista brasileira Lívia Gaudêncio e a performer mexicana Violeta Luna e envolve criação em vídeo, fotografia, dramaturgia e cena.

Ainda no hall de entrada do teatro, a performance tem início dando ao público a oportunidade de oferecer elementos que serão usados durante o espetáculo. Há papeis para que o público responda a pergunta: “O que te violenta?”. Assim, espectadores doam à obra suas próprias feridas, a serem inseridas poeticamente durante o desenvolvimento da performance. Nas palavras de Gaudêncio: “Existir não tem ensaio. Terra é corpo. Corpo violado é ferida aberta que sangra de geração em geração. Por isso, todo encontro é uma oportunidade de cura.”

O encontro ocorre no espaço interno do teatro, onde a artista já se encontra, coberta por uma longa veste verde clara, que ocupa todo o palco. Lívia mimetiza o tronco de uma árvore frondosa. De seus cabelos ruivos pendem cachos de urucum, que descem por sua saia longa. Ela colhe os cachos de urucum, como quem colhe seus próprios frutos, espalhando-os em um círculo. Ainda ritualmente, vai espalhando Cartas de Tarot por sobre esse formato, com cuidado e um profundo conhecimento de cada elemento ali utilizado. Sejam as cartas, seja o urucum.

Os textos ofertados pelo público são lidos, rasgados e queimados. Sobre essas cinzas, a performer retira uma carta do oráculo para leitura coletiva. Ao ler o resultado da tiragem, executa movimentação que dialoga com o tema da carta.

A transformação do espaço é um elemento que merece destaque, devido à radicalidade com que o palco se altera de um ambiente selvagem e em meio à natureza, para uma paisagem humana, permeada de símbolos culturais.

Essa dualidade - um lado animal, natural, irracional, e outro humano, cultural e racionalizado – é uma dicotomia que parece atravessar todo o trabalho. Lívia, ao criar suas próprias cartas de Oráculo da Deusa, tornou-se um corpo impregnado de simbolismos, arquétipos e narrativas muito antigas, que desafiam a compreensão racional por passarem por um entendimento derivado da nossa memória ancestral, do DNA, da nossa animalidade.

Ali se abre um portal de comunicação com o inconsciente coletivo. De árvore a xamã, a figura da mulher encarna a conexão com nossas raízes mais profundas. A mulher que Lívia representa na performance comunga com as mulheres quilombolas e sua tradição de valorização das ervas, de cura por meio da natureza. Essa mulher também ressoa em sintonia com aquelas que, dentro dos navios negreiros, tinham a sensibilidade de se preocupar com as gerações futuras, por meio da feitura das Bonecas Abayomis. Há algo de material sensível que essas mulheres, de diferentes épocas e contextos, buscam ativar. Um modo de existir que as torna agentes de uma força de transformação e, ao mesmo tempo, de manutenção do estado das coisas. Uma força de cura.

Buried, dir. Jill Greenhalgh, 2019Ainda dentro dessa ideia de junção de tempos e espaços distintos, a finalização da residência “Burried”, com Jill Greenhalgh, leva a cabo a dualidade transformação-manutenção. A artista do país de Gales, fundadora do The Magdalena Project, optou por trabalhar com a palavra “Enterrada” investigando respostas individuais para essa palavra. Segundo Greenhald: “Memórias enterradas, segredos enterrados, erros enterrados, corpos enterrados, dor enterrada, provas enterrada, tesouro enterrado. Pode ser uma celebração do que acontece quando enterramos sementes no solo. Ou uma reflexão sobre o enterro e preservação de antiguidades sob a lava.”

Para isso, Greenhald trouxe o elemento “terra” durante a residência, que acabou ganhando muita força no sentido de relacionar-se ao contexto recente de derramamento de lama nas cidades de Mariana e Brumadinho. O rompimento de barragens de contenção de rejeitos oriundos de minas de extração de ferro [4] causou uma tragédia sem precedentes, tanto ambiental, quanto sociocultural.

Essa mesma terra que soterrou tantos corpos na história recente de Belo Horizonte, cidade que abrigou o evento, também foi dada a cada artista residente. 150kg de terra e uma cadeira eram os elementos base para trabalhar e, além desses materiais, as residentes também trouxeram objetos afetivos (músicas, textos, roupas e outros estímulos que pudessem compor a performance). Ao longo dos 5 dias de residência, o simples ato de respirar dentro do espaço cênico já se mostrava desafiador e, de certa forma, catártico. Seria esse sofrimento para respirar o mesmo que os moradores das áreas afetadas sofreram? Estamos todos nós enterrados vivos nessa sociedade capitalista que coloca o lucro antes da vida? Como enxergar o futuro quando se está com a visão turva pela poeira preta?

Lidar com essas memórias, com esses materiais e com o contexto de catástrofe ainda impregnado na subjetividade das residentes, constituiu um mote para criação que, inevitavelmente, ultrapassa os limites do pessoal/biográfico, entrando no campo do social e do político.

E foi isso mesmo que ocorreu na finalização da residência. Máscaras de respiração foram distribuídas à plateia, devido à tamanha dificuldade de respirar no local. Tendo cada artista usado a terra e os demais materiais para gerar instalações e esculturas à sua própria maneira, espectadores tinham que encontrar caminhos para transitar entre elas, percebendo a cada momento novas imagens, sons e movimentos que emergiam e se interrelacionavam, em meio às montanhas de terra preta.

Os espectadores eram transportados para o universo caótico que emergiu da palavra “Enterrado”, recoberto por toneladas e toneladas de terra, mas também permeado de símbolos criados pelas artistas residentes. Usando as máscaras de respiração os espectadores também performavam ali, eram alterados, transformados. Atravessar o espaço da instalação era como andar no escuro e, de repente, se deparar com pequenas ilhas de presença humana em meio a um grande amontoado de terra preta.

Buried, dir. Jill Greenhalgh, 2019O percurso entre essas ilhas fazia surgir conexões entre elas, numa espécie de réquiem onde alternavam sentimentos como luto, cura, reverência aos mortos e, principalmente, denúncia. Nos olhos dos presentes se via a repulsa à exploração predatória dos recursos naturais, sem respeitar a natureza ou a vida humana, típica da força masculina que avança, custe o que custar.

Presença e ausência, morte e vida, passado, presente, futuro, privado e coletivo, pessoal e político são dimensões que se sobrepõem e se entrelaçam nesta composição polissêmica e aberta. As percepções ativadas, para além da linguagem discursiva, ocupavam também o corpo dos espectadores, em sua dimensão sensível e cinestésica.

Esses são alguns dos exemplos - entre tantos! - escolhidos para este pequeno texto que, nem de longe, consegue retratar a vivacidade desses dias de “O Levante”. Outros poderiam ser analisados, na intenção de comparar a experiência de “O Levante!” com outros momentos históricos em que um grupo de artistas decide se juntar para criar, se fortalecer, resistir e suportar viver em momentos de alta vulnerabilidade humana.

Impossível não relacionar “O Levante!” com os encontros na Black Montain College. Fundada na década de 30 do século passado, na Carolina do Norte - EUA, nela lecionaram artistas e pensadores europeus, que fugiram da Europa durante a II Guerra Mundial, criando um espaço de fortalecimento e de resistência em meio ao cenário de destruição e horror daqueles tempos. Os artistas da Black Mountain College deram atenção à percepção e à sensibilidade, trouxeram o corpo ao centro dos processos criativos, como que recuperando seu valor em contraste às montanhas de cadáveres geradas pelos campos de concentração nazista.

Guardadas as devidas proporções, assim como na Black Mountain College, “O Levante!” promoveu um celeiro de contra-cultura em tempos também de guerra: opressão, desrespeito à vida e desmoronamento de conquistas feministas. O momento é de catástrofes não apenas ambientais, mas de perda de direitos, de uma onda conservadora que atola a todos em pensamentos retrógrados, misoginia e violação de Direitos Humanos.

Contra isso, aglomerações temporárias como “O Levante!” e a “Black Mountain College” potencializam-se como espaços de liberdade, ainda que temporária - e talvez por isso mesmo, de alta intensidade e potência nos encontros.

Fugidias, porque efêmeras, essas experiências produzem efeitos duradouros na memória e no corpo, de quem delas toma parte. São Zonas Autônomas Temporárias (TAZ), para usarmos o termo cunhado pelo historiador estadunidense Hakim Bey [5], cujos ecos se ampliam no tempo e no espaço. Elas não acabam quando se desfazem…. tanto que estamos, aqui e agora, ainda lembrando, falando e ecrevendo sobre elas.

Christina Fornaciari“O Levante – Festival Internacional de Mulheres em Cena” gerou TAZ porque se deu em construção coletiva, horizontal, de trocas não mediadas pelo capital - as artistas doaram seu trabalho, gratuitamente, assim como diversos espaços culturais doaram suas estruturas – e livre de julgamentos.

Talvez a maior potência da TAZ seja justamente criar testemunhas, pessoas que carreguem a TAZ e a transmitam, mesmo depois de desfeito o encontro. Como as bonecas Abayomi, que mesmo depois de tantos séculos, sobrevivem presentes nos Quilombos; como as tradições de consulta aos oráculos, atualizada por Lívia em sua performance. Unindo diferença e repetição, tradição e renovação, “O Levante!” proporcionou um espaço de convívio harmonioso e não repressivo, elevou o grau de intensidade da vida, algo excepcional nos dias de hoje. Que venham outras edições!

Christina Fornaciari
Novembro 2019

Todas as fotos por Christina Fornaciari.

Participants in Buried, dir. Jill Greenhalgh, 2019


1. Christina Gontijo Fornaciari (Brasil, 1977) é Doutora em Artes da Cena pela UFBA - Universidade Federal da Bahia, e Mestre em Performance pela Queen Mary University of London. É Professora no Curso de Graduação em Dança da UFV - Universidade Federal de Viçosa, Brasil. Trabalha na interface entre a Performance, o Teatro e a Instalação, com pesquisa que entrelaça Política, Direitos Humanos e Arte em contextos de Interculturalidade. christinafornaciari [@] gmail.com

2. Quilombo é o nome dado a comunidades formadas por descendentes de africanos escravizados, que fugiram de seus senhores para viverem em liberdade. Atualmente, após a abolição da escravatura, esses territórios guardam características específicas do povo africano submetido a escravidão, desde a culinária ao modo de gerir coletivamente as crianças da comunidade.

3. Os africanos escravizados chegavam ao Brasil nesses grandes navios, denominados navios negreiros. Como a viagem durava meses e havia muitas crianças nesses barcos, as mulheres faziam com trapos as bonecas Abayomis, com a intenção de preservar o direitos das crianças de brincarem, de acalentá-las, propiciar momentos de alegria.

4. Esses rompimentos lançaram mais de 50 milhões de metros cúbicos de lama nos rios da região, além de deixar 5 municípios totalmente submersos na lama. Cerca de 400 pessoas foram mortas nessa tragédia e outras 200 ainda estão desaparecidas. Investigações apontam que houve negligência por parte da mineradora VALE, que está sendo processada pelo crime ambiental e humano que causou.

5. Conhecida por sua sigla T.A.Z.(do inglêsTemporary Autonomous Zone) a ideia sobre uma Zona Autônoma Temporária, concebida por Hakim Bey, é de como uma coagulação voluntária de pessoas afins podem maximizar eles mesmos suas liberdades na sociedade atual, formando redes independentes de convívio e comunicações, eludindo assim as estruturas formais de controle. O livro TAZ foi publicado no Brasil pela Editora Veneta dentro da coleção BADERNA, em 2018. O livro original em inglês está registrado como copyleft.