Vértice Brasil 2012 - Coluna Contexto

Dohter, que significa filha em inglês arcaico, é o nome do work in progress que deu início ao Vértice Brasil – encontro e festival internacional de teatro feito por mulheres – que aconteceu em Floripa no decorrer da semana. Uma oficina conduzida pela diretora galesa Jill Greenhalgh durante as duas semanas anteriores ao evento e frequentada por 10 artistas catarinenses investigou o tema e criou perguntas e respostas pessoais sobre o que é ser/ter filha. Este material foi pra cena e tornou-se poesia viva.

Jill Greenhalgh, assim como várias outras atrizes/diretoras presentes no encontro, trabalhou insistentemente com a escuta, com a percepção apurada do outro e do entorno, com a confiança, com a presença. Teatro é arte do encontro. Esta é uma frase que todos que exercem o ofício teatral conhecem. No entanto, são poucos os que a compreendem e conseguem realizá-la de forma plena. Teatro é um ato de amor. Não de um amor piegas, mas de uma troca generosa que envolve o espectador como parte ativa da cena.

Durante a semana, as participantes fizeram oficinas, assistiram espetáculos, debateram temas variados, trocaram experiências, consolidaram parcerias. A proximidade com a natureza certamente ajudou a instaurar uma atmosfera vibrante. O mar plácido de Cacupé, as árvores frondosas e um esplêndido bambuzal serviram de palco para Ofélias, Luisas e Ladies Macbeth se posicionarem e ocuparem com autoridade seu lugar no mundo – e no teatro.

O Vértice é um evento que está na terceira edição e é ligado ao Projeto Magdalena, uma rede internacional de teatro contemporâneo que busca dar visibilidade ao trabalho de mulheres criadoras e criar oportunidades de trabalhos colaborativos entre artistas de diferentes nacionalidades e práticas teatrais. Este ano o encontro investiu na relação com os países do continente americano, com artistas de 10 países pensando estratégias e desenhando conjuntamente parcerias artísticas. Na performance de abertura, Dohter, o público entrou na sala semiescura, levemente iluminada por pequenos pontos de luz, e encontrou nichos formados por fotografias antigas, documentos pessoais, tapetes, tecidos, móveis, espaços construídos quase como altares em homenagem ao que de mais sagrado pulsava naquele lugar. Em uma parede ao fundo, um vídeo dialogava com o ambiente, apresentando imagens e sons inusitados, que incluíam canções antigas, sapatinhos de bebê e um rádio de mesa. Sobre pequenos tablados irregulares envoltos por uma cortina branca, 10 atrizes desenhavam ações no espaço enquanto falavam, cantavam ou apenas silenciavam. Durante vinte e poucos minutos, uma centena de pessoas mergulhou em relatos, memórias, biografias densas e ao mesmo tempo delicadas. Vozes e olhares se cruzaram, sorrisos e lágrimas surgiram nos rostos da plateia. Presença.

Alguns dias depois, no espetáculo Ave Maria, uma atriz prepara seu espaço de trabalho em silêncio. Uma tábua de passar roupa, um varal, uma cadeira, uma boneca, um pedaço de jornal. Um ser com cabeça de caveira atravessa a sala. Sua presença potente irradia no ambiente. Seus olhos parecem vivos. A atriz repassa suas ações, veste o personagem e a si mesma. Outras caveirinhas proliferam pelo espaço: pintadas e estampadas em roupas e em tecidos, objetos, caixas, até um bebê caveira surge do cenário. A atriz Julia Varley, do renomado grupo dinamarquês Odin Teatret, homenageia em cena a atriz chilena Maria Canepa, morta em 2006. Silêncio.

Marisa Naspolini
Published in Diário Catarinense July 14th
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